sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Dos potes de margarina

Romantizar lhe era intrínseco. Culpa, talvez, da mãe, que a vestira de cor-de-rosa tão logo ela saíra de seu ventre, afinal, dizem que as primeiras impressões são as que efetivamente ficam.
Passou a ver o mundo com olhos de Afrodite e a acreditar que, em essência, tudo e todos possuíam a delicadeza das pétalas de rosas. Com o correr dos anos os dias lhe acrescentaram à vida histórias de paixão e amor, e a fizeram protagonizar muitas das cenas que permeavam seus pensamentos nas noites solitárias, quando somente o travesseiro pactuava de seus sonhos e lhe aquietava o peito ao oferecer sua cumplicidade. Nestes instantes, paradoxalmente, o silêncio a fazia ouvir, pois somente quando o desamparo lhe inundava as entranhas é que lhe provava que não há nada que se justifique em todo o universo quando se tem o coração desprovido daquilo que é passional.
E assim lágrimas eram forjadas entre incontáveis poemas mal escritos e composições inacabadas. Lágrimas ora de resignação, ora de credulidade, mas, principalmente, lágrimas repletas das tonalidades de seu mundo cor-de-rosa.
Trazia-lhe desassossego o eterno nó na garganta, o constante aperto no peito, o sentimento ininterrupto de nostalgia daquilo que ficara aprisionado no passado. Uma tristeza branda continuamente repousava em seu olhar. Mas não seria a tristeza uma condição daqueles que trazem o romantismo não em seus corações, mas em suas vísceras?
Aos poucos os ensaios da existência lhe apresentaram os matizes azuis, verdes, amarelos, vermelhos e outras infinitas nuances, mas nada demoveu aquela primeira impressão causada na infância. E foram botões de flores cor-de-rosa que vieram lhe acolher quando a velhice lhe curvou o corpo e não mais lhe permitiu enxergar a beleza do céu nos minutos que antecedem o adormecer do dia. Mas a ironia - a sempre implacável ironia - resolveu convidá-la a conhecer sua infame literatura de cordel e, logo ela, que passara a vida a colecionar resquícios de momentos que preservava nítidos na reminiscência dos sentidos, precisou, nos derradeiros dias de vida, abandonar o refúgio de sua alcova - o quarto de paredes cor-de-rosa que a acompanhara desde a infância e que fora seu calabouço, seu salvo-conduto, seu único e discreto confidente - pois ali já não havia mais espaço para comportar sua presença em meio às centenas de potes de margarina.